quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Two of Us

TWO OF US
AUTOR: ROB GORDON (http://champ-chronicles.blogspot.com/2010/11/two-of-us.html)

Por trás dos cabelos longos e bigode, ele está olhando para baixo, observando algo fixamente. É surpreendido pela chegada do companheiro, que possui cabelos ainda mais longos que quase escondem os óculos de aro fino.

O recém-chegado senta-se ao lado do amigo, olhando para baixo e apertando os olhos devido à miopia. Após alguns segundos, pergunta:

– Ele já entrou no palco?

– Já. Está tocando há alguns minutos – responde o amigo.

– Onde é?

– No Brasil. Em São Paulo, acho.

– Está cheio?

– Muito.

O de óculos permanece em silêncio alguns segundos, tentando captar o som que vem de baixo, de longe.

– O que ele está tocando agora? Jet?

– Acho que sim, não dá para ouvir direito por causa da gritaria. Mas acho que é sim.

– Eu gosto desta música.

– Ele está falando com a platéia, mas não consigo entender nada.

– Acho que é português. Não dá para ouvir direito, o público não deixa.

– Com a gente era assim, também. Lembra no Japão? Ninguém ouvia nada.

– Olhe! All My Loving!

Ambos começam a bater as mãos no joelho, de forma quase inconsciente, acompanhando o ritmo da música. “I’ll pretend that I’m kissing…”, o de bigode canta baixinho.

– George! Você ainda se lembra da letra!

– Tem como esquecer? Aposto que você se lembra também.

– Eu me lembro de todas. Todas as músicas. Todos os versos.

– Ele está afinado ainda, não?

– Ele sempre cantou muito bem. Desde menino, ele sempre cantou muito.

Ficam em silêncio mais um pouco, olhando para baixo atentamente.

– Qual é agora? Drive my Car? A platéia esta fazendo barulho demais.

– Drive my Car. Essa é quase toda dele, sabia? Eu apenas ajudei em uns trechos.

– Está no Rubber Soul, né?

– Acho que sim. Sim.

– A platéia está cantando a música inteira.

– Como eles sabem a letra? Eles não eram nem nascidos quando lançamos isso.

– Não sei... Mas eles estão cantando a música inteira, John. Dá para ver daqui.

Permanecem em silêncio por mais algum tempo. O de óculos, mesmo sem perceber, balança a cabeça para os lados discretamente, ao som da música.

– Ele foi para o piano.

– Eu nunca entendi como ele sabia tocar tantos instrumentos. Isso não é normal.

That leads to your door
Will never disappear

– Qual ele está tocando agora? The Long and Winding Road?

– Sim. Veja! As pessoas estão chorando!

Afastando os cabelos do rosto, o míope aperta ainda mais os olhos, vasculhando a multidão.

– Não gosto dessa música – ele diz, mais para si mesmo que para o amigo.

– É linda. Ninguém conseguia fazer baladas como ele.

– Mas não gosto. Nós mal nos falávamos na época.

– Acontece. Acontece com todo mundo, por que não iria acontecer com a gente?

– Verdade.

– Ele está tocando as nossas, olhe. Antes foi And I Love Her. Agora é Blackbird.

– Eu não acredito que as pessoas ainda cantam junto, depois de tantos anos... A letra não está aparecendo no telão? – pergunta o de óculos, abaixando-se ainda mais e tentando ver o palco.

– Não, elas sabem mesmo. Dá para perceber daqui.

– Ele disse meu nome?

– Sim. Você sabe qual ele vai tocar. Ele escreveu para você.

I still remember how it was before,
and I’m holding back the tears no more…

– Você está legal, John?

– Eu e ele perdemos muito tempo. Hoje eu sei disso.

– Eu sei.

– Sabe, George... Se nós soubéssemos que eu teria tão pouco tempo, talvez tivéssemos nos comportado de outra maneira.

– Talvez não. Vocês sempre foram melhores amigos. Ele sabia disso. Ele faz questão de cantar essa, todo show. E ele sabe que você está vendo. Ele não canta para a platéia, ele canta para você. É a forma que ele encontra de matar a saudade um pouco.

– Será?

– Sim. Eu senti muito sua falta antes de nos reencontramos. Olhe as pessoas lá embaixo, estão soluçando. Todos sentem sua falta.

– Eu sinto muito a falta dele. Eu sinto muita saudade da gente. Especialmente do começo. Lembra da Alemanha?

– A gente ainda era menino... Tudo era o máximo, tudo era novidade. Nós éramos novidade.

– Nós ainda somos novidade. Olhe, essa é sua!

You’re asking me, my love will grow?
I don’t know, I don’t know

– Eu me lembro de quando escrevi. Era difícil escrever algo com vocês ali.

– Essa música é linda.

– Olhe! No telão! Ele colocou uma foto minha!

– A gente gostava demais de você. Você era mais novo, víamos você como uma espécie de caçula.

– Eu sei – concorda o de bigode, rindo alto.

Esperam em silêncio a plateia aplaudir. Ao final da música, ambos estão visivelmente emocionados, cada qual com suas lembranças. Os acordes de uma nova canção parecem despertá-los.

– Eu gosto dessa!

– Essa é dele, não é nossa.

– Band on the Run? Mas poderia ser nossa.

– Se dependesse de mim, seria.

– Ah, sim. De todos nós, você sempre foi o mais roqueiro, essa música é a sua cara.

– Ele fez muita coisa boa, né?

– Sim.

Enquanto o de óculos bate os dedos no joelho, o de bigode, sentado de pernas cruzadas transforma sua própria coxa no braço de uma guitarra imaginária. Ambos parecem distantes, talvez pensando não no que foi, mas no que poderia ter sido.

I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade

Enquanto o de bigode tamborila os dedos no ritmo, seu amigo remove os óculos rapidamente. Está chorando.

– Você sempre chora nessa.

– Foi uma das últimas que escrevemos juntos. Mesmo separados. Metade é minha, metade é dele. É estranho, hoje, vê-lo cantando minha parte, e eu aqui.

– Ele não está cantando sozinho.

– Como não?

– Olhe o estádio. É uma voz só, uma voz de sessenta mil pessoas.

– O que são aquelas coisas brancas? Balões de gás?

– Sim.

– Como isso fica bonito, vendo daqui de cima.

– Espere… Give peace a chance? Isso não era da música, certo?

– Não.

– Isso é seu!

– Sim.

– O estádio inteiro está cantando! Olhe os balões de gás! As pessoas estão chorando, se abraçando.

O de óculos resmunga um palavrão, sorrindo. Seus óculos estão embaçados, molhados de saudade.

– Let it be. Essa não poderia faltar.

– Eu não me conformo com isso, com as pessoas ainda saberem as letras inteiras.

But in this ever changing world
in which we live in

– Eu gosto dessa também.

– Uau! Você viu aquilo, John? São fogos?

– Ficou demais, né?

– Nós não tínhamos isso no nosso tempo.

– Nós não precisávamos.

– Mas ele também não precisa. Mesmo assim, ficou lindo.

– O que as pessoas estão cantando, agora? Hey Jude?

– Sim... Estão abraçados, cantando junto com ele.

– É engraçado, George... Eu sei que nós éramos bons... Mas acho que nunca entendi a importância que temos na vida das pessoas, até pouco tempo atrás. Quando eu assisto aos shows dele, e vejo as pessoas cantando junto, chorando... Mexe demais comigo.

– Nós éramos bons, John. Você sabe disso.

– Aparentemente, ainda somos. As pessoas ainda...

– Ainda o quê?

– Sabe, eu estava errado.

– Oi?

– Quando eu disse que o sonho acabou. Eu estava errado.

– Nós três sempre soubemos disso, que você estava errado. Você sempre falou demais. Lembra aquela confusão de sermos maiores que Deus?

– Sim... Mas o sonho... O sonho não acabou nunca. Eu errei.

– John?

– Sim?

– O sonho nunca vai acabar. Não enquanto as pessoas se lembrarem. E elas vão se lembrar para sempre.

Sorrindo, John Lennon levanta-se e oferece a mão a George Harrison.

– Você está com sua guitarra?

– Eu sempre estou com minha guitarra, você sabe.

– Vamos tocar um pouco?

– Qual?

– Qualquer uma. Deu saudade.

Milhões de quilômetros abaixo, Paul McCartney, emocionado, agradece à platéia.

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